Lembranças da Itália....


“Enquanto pessoas e teorias brigam, há a vida real”. Não lembro onde li essa frase. Ela me ocorreu em meio às últimas páginas da biografia do Lacan, lidas num café, momento esse sempre arraigado de luto: fim do livro, fim da relação com o objeto-livro, fim da biografia que narra o fim da vida do biografado, simplesmente o fim.
Pensei em perdas familiares, no Brasil e na Itália. E, naquele instante vagaroso da contemplação do fim, pensei também no momento fúnebre do Brasil. Aliás, do mundo, desse Zeitgeist de “acinzamento” cultural que padecemos hoje.
Pensei, sobretudo, numa perda em especial: um ente querido chamado Giovanni, um Ítalo-Toscano de raríssima doçura, o maior anfitrião do mundo, que fora casado com a prima de meu pai e deu nome a meu sobrinho, numa bela e justa homenagem.
Nós, do lado Brasil da família, sempre desembarcamos em sua aconchegante casa na Itália.
Eram dias de alegríssima convivência em que tudo parecia perfeito e harmonioso. Os jantares, “mangia che te fa bene”, sempre sublimes e fartos de conversas calorosas e alegres, tal qual num filme do Fellini.
Eis que recordo que um dia, o grande Giovanni, para provocar meu lado político à esquerda trouxe-me sua medalha de estimação com a cara do Benito Mussolini, sucedido de uma história engraçada: contava-me que o melhor método para conter os “bagunceiros”, nos áureos tempos do ditador, era força-los a tomar purgante e aprenderem a lição que a “ordem” deveria prevalecer na cidade. O que me fez rir à beça, é claro.
Enfim, abomino figuras políticas como o Mussolini, o que obviamente pouco importa. Ele vivera a guerra e toda a divisão política de uma democracia velha como a Itália e construíra uma narrativa pessoal daqueles sombrios tempos. O ponto é que eu jamais conseguiria capitular sua posição política a ponto de arranhar uma vírgula na pessoa fantástica e doce que conheci, e que sempre pensava nos outros no primeiro plano. Acho uma reflexão importante em meio a esse mundo “beligerante” que vivemos hoje, de tolerância zero, no qual prevalece o “sujeito da fala”, o “sujeito do discurso” e que se desdobra na ânsia de aniquilar oponentes e destruir biografias.
O fato é que nesse insosso e intragável "caldo cultural" esquecemos a vida real em si, que deveria se sustentar no respeito a diferenças, mas fundamentalmente provada no exercício de uma vida fraternal e solidária.
Parece que o tão simples já seria o bastante!

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