Incêndios : do fuzil à palavra.


Observação: esse texto contem spoilers.

 O espetacular filme “Incêndios” do diretor Denis Villeneuve permite pensar desde a psicanálise, a matemática, as religiões, inclusive passando pelo teatro de Sófocles, e sua obra-prima "Édipo Rei”. Ficarei restrito à psicanálise, sobretudo em alguns recortes da encruzilhada psíquica vivida por alguns personagens e seus desfechos. Os gêmeos Jeanne e Simon perdem sua mãe e ao saber de seu testamento se lançam, cada um a seu modo, em jornada em busca do passado da mãe, Nawal Marwan. Ela deixa envelopes, um a ser entregue ao pai dos gêmeos e outro para o irmão deles. O desfecho magistral do filme é conduzido por uma narrativa cheia de mistérios, revelações e sobretudo o horror vivido pela mãe: o pai deles é também irmão (1 +1  =1)! Abou Tarek fora concebido por Nawal (cristã) e seu namorado muçulmano muitos anos antes em meio a um conflito entre católicos e muçulmanos no Líbano. Os irmãos de Nawal matam seu amante e o filho do casal nasce rejeitado. Tarek recebe uma marca no corpo e é separado da mãe vivendo em orfanato quando explode a guerra. Ambos tentam se encontrar durante anos. Ela se vinga matando um líder religioso e vira uma prisioneira com uma marca bem singular: faz do canto uma ação de resistência.  O orfanato é queimado e seu filho bebe nas fontes do abandono e da violência, e vira um atirador de elite e um torturador sádico durante o conflito.  E é justamente ele que a violenta e estrupa na cárcere gerando os gêmeos!  Primeiro recorte: Tarek fora concebido em meio o amor de Nawal e seu namorado muçulmano. Fora desejado. Os gêmeos não foram desejados, mas cresceram no Canadá com condições que lhes permitiram ser reconhecidos como sujeitos.  Pode se pensar também nas estratégias possíveis em relação ao desamparo. Tarek vira um atirador “eficiente”, enquanto Nawal resgata sua história pelo canto, pela letra das cartas, pela palavra, que mesmo que precária, é nossa única possibilidade de criar e, como no caso de Nawal, suportar o horror.

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