Freud nunca foi um João de deus........

 

Confesso que não me surpreendi quando abriram a "caixa-preta" do João de Deus. A idealização excessiva à figura de um mestre (religioso ou não), somada a sua predisposição portunista e criminosa deu no que deu: abuso da boa fé alheia, gerando traumas muito sérios em suas vítimas.
Quis escrever sobre o evento pela natural comoção, mas também para conectá-lo a um dos mais lindos textos de Freud, "Observações sobre o amor transferencial", de 1915.
É um texto bastante técnico, fala de termos importantes na gramática psicanalítica, como "manejo na transferência", "resistência", "amor transferencial", etc., da ética na relação médico/paciente e, sobretudo, toca em uma questão central: o que fazer com o amor do paciente, quando o mesmo adentra a terrenos perigosos, como a devoção exagerada, a paixão desmedida, a idolatria que rebaixa todo o resto, o apelo ao erotismo e ao sexo, etc., e tudo que pode transbordar dessa relação?
De cara Freud da uma "senhora pancada" no ego de quem está nessa posição! Alerta que o enamoramento do (a) paciente é induzido pelo lugar que o analista ocupa, e não aos seus encantos pessoais. Ou seja, não há motivo para orgulhar-se disso, ao contrário, é preciso ter todo cuidado porque pode ser o caminho mais curto para o fim do tratamento, desperdiçando uma valiosa força que poderia ser o vetor para minar resistências e de cura das neuroses.
Sempre achei especialmente belo testemunhar esse discernimento cuidadoso do pai da Psicanálise: reconhecer-se num lugar muito limitado, se despindo de qualquer vaidade narcísica para defender um campo do conhecimento e a ética de uma proposta terapêutica!
E Freud vai além, sublinha que motivos éticos e também técnicos se unem para não atender as demandas e amor/sexo do paciente. Embora seja desastroso para a análise tanto satisfazer, mas também negar tais demandas do paciente. O primeiro porque destrói a suscetibilidade do paciente à influência do tratamento analítico. E o segundo porque a relação, e a eficácia do tratamento, se baseiam na sinceridade, e neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de seu valor ético.
Ou seja, o analista tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Tentar se abster ao máximo, forma muito custosa em que o analista faz também faz o seu "pagamento". Enfim.... Decididamente Freud, esse sim mestre, nunca foi um João de deus!

"É verdade que o amor consiste em novas adições de antigas características e que ele repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo que não reproduza protótipos infantis. É precisamente desta determinação infantil que ele recebe seu caráter compulsivo, beirando, como o faz, o patológico". (Freud, 1915).

Comentários

  1. Todos nós somos muito carentes, e por isto nos apegamos a quem nos dê um pouco de atenção. E este amor transferencial é ilusório.

    ResponderExcluir

Postar um comentário